sábado, 28 de abril de 2012

Camboja - parte 1

Travessia da Tailândia para o Camboja por terra

Já estava decidido: a Indochina seria feita por terra. Mas lendo os relatos da travessia da fronteira da Tailândia com o Camboja dava arrepios. Alguns afirmavam que só era possível se fossem pagos subornos, outros davam a entender que seria impossível fazer o trecho de Aranyapratet a Siem Reap sem levar no mínimo um golpe. Nem uma coisa nem outra seria um enorme problema em si. Mas um país com este cartão de visitas... o Camboja foi destruído pelo Khmer Vermelho no fim dos 70 e o manual de construção foi queimado junto. A reconstrução de fato, só foi retomada a partir de meados dos anos 90. Se o Brasil que nunca foi destruído é o que sabemos, imagine o que esperávamos do Camboja. Mas, recentemente, foi criada a possibilidade de se obter vistos pela internet, o e-visa. Nos animamos e fomos por este lado. E a esperança surgiu na poeira. Osite oficial é perfeito, pasme (navegue pelas páginas análogas da Índia e China e entenderá o espanto). Conseguimos nossos vistos e partimos.

De Bangkok para Aranyapratet pegamos um ônibus comum e não houve sobressaltos. Aliás, vale registrar que Bangkok tem uma eficiente rodoviária, coisa relativamente rara no sudeste asiático. Em Aranyapratet tomamos um tuk-tuk até a fronteira, pois já tínhamos o e-visa. O motorista até tentou parar numa agência que fica poucos metros antes da fronteira e cobra mais caro pelo visto aos desavisados. Dissemos que já estávamos com o visto e ele tocou adiante sem problemas. A fronteira é uma área bem feiozinha, com um mundo de gente indo e vindo, vendedores de tudo quanto é bugiganga. Tudo isto dividindo espaço com vários cassinos (lado do Camboja). Mas nessa altura do campeonato, pobreza não nos assusta mais. Na Ásia não se associa pobreza a violência, como nos acostumamos nas grandes cidades brasileiras.  Pegamos a fila da emigração e recebemos nossos carimbos sem qualquer problema. Mas eu vi um europeu, pouco antes disso entregando uma cédula de dólar a um agente de fronteira com roupa parecendo de militar... enfim, estávamos dentro. Um ônibus gratuito nos levou até um terminal em Poipet, já no Camboja. Ali, rachamos um taxi com um americano e um inglês para uma viagem de 2 horas até Siem Reap. Chegamos. Sem golpe, sem suborno e sem susto. Na moral.

Um pouco da História

O Império Khmer se formou dominando os povos da região que hoje compreende o Camboja e outras vizinhanças, como o delta do Rio Mekong entre os séculos IX e XIII. Em seguida entrou em declínio e em 1431 os tailandeses dominaram a então capital, Angkor. Os khmers sempre foram beligerantes, mas depois que tomaram um pau dos tailandeses, parece que só conheceram fracassos e o declínio persistiu até o século XIX. Para sair da pressão constante sofrida a leste pelos vietnamitas e a oeste pelos tailandeses, pediram arrego para a França e se tornaram uma colônia deste pais, quase que voluntariamente em 1867. Esta situação se manteve ate 1953 (com um pequeno intervalo entre 1941 e 45, sob o domínio japonês), quando o rei Norodom Sihanouk, colocado pela própria França no trono por acharem que o cara era um toloba, declarou a independência do Camboja. A França, combalida pela Segunda Guerra, mesmo ajudada pelos Estados Unidos, tomava um pau na Indochina, principalmente no Vietnam e teve que ceder.

Como se fosse pouco o longo período de submissão e exploração estrangeira, em 1964 surge o Khmer Vermelho. Este seria o nome com o qual ficou conhecido o braço armado da rebelião comunista que em 1975 assumiu o poder, liderada por Pol Pot. Temos aqui uma prova histórica de que nada está tão ruim que não possa piorar. O regime promoveu um dos maiores massacres já registrados, principalmente se considerarmos que os assassinatos eram da própria população. Cerca de um terço dos habitantes foram mortos, seja por execuções, doenças ou fome. A ideia básica era de que aquele país, então renomeado como Kampuchea Democrático, recomeçasse tudo do zero. As cidades foram evacuadas e todos deveriam voltar às origens, plantando arroz. Então, quem não servisse para isso, era executado, geralmente a golpes de picaretas, porretes, etc, para se economizar munição. Quem decidia quem ia morrer? Fácil! Qualquer soldadinho khmer vermelho. Professores, médicos, jornalistas, intelectuais em geral, quem usasse óculos, enfim, não serviam e foram mortos, quantos foram encontrados. Após frequentes incursões do khmer vermelho no terrritório do Vietnam e pressão popular para intervenção no país vizinho, o Vietnam em 1979 invade o Camboja e encerra o domínio do khmer vermelho, pondo fim ao massacre. Pol Pot se embrenha na selva com o restante de seu exército, que passa a agir como guerrilha e assim permanece até sua morte em 1998.

Chamar Pol Pot de monstro ou compará-lo a Adolf Hitler, pelo furor assassino, é um recurso de linguagem para explicar as dimensões do mal que provocou. O perigo é deixar de dizer que Pol Pot não agiu sozinho. Se viveu até morrer docemente numa cama com mosquiteiro, foi porque soube tirar vantagem da geopolítica da Guerra Fria e ser aceito como um obstáculo importante ao expansionismo soviético na Ásia. Até as eleições supervisionadas pela ONU em 1993, o Khmer Vermelho era reconhecido pelos Estados Unidos como o governo legítimo do país, enquanto o Camboja, sob intervenção vietnamita, sofria pesadas sanções internacionais. Ocupava uma cadeira nas Nações Unidas e participava ativamente em seus organismos, como a Unesco. A China continuou fornecendo-lhe armas até 1990 e a Tailândia ainda lhe dá certo apoio logístico. A partir de 1979 nenhum país podia argumentar ignorância sobre o genocídio cometido pelo regime do Khmer Vermelho. (Veja Internacional – 1998)

Hoje o país está estável e vive um período de democracia, dependendo ainda de ajuda internacional e da ONU.

Significado de Kampuchea: Karma de dor (Tiziano Terzani). Coincidência?

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